Genderless: o (novo) nome da rosa na perfumaria

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Feche os olhos e pense em um perfume de rosas. A imagem que vem à mente é, muito provavelmente, feminina — associada à delicadeza, ao romance e à pureza. Agora, pense em um perfume masculino. As notas que surgem são amadeiradas, talvez com toques de couro ou tabaco. Mas e se essa divisão, tão arraigada em nosso imaginário, for uma das mais bem-sucedidas construções do marketing moderno, e não uma regra da natureza?

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A verdade é que o perfume, em sua origem — do latim per fumum, “através da fumaça” —, nunca teve gênero. Era uma ponte aromática entre o terreno e o divino. Hoje, assim como a fumaça de um incenso que se dissipa no ar, as rígidas barreiras de gênero na perfumaria começam a se dissolver, levantando uma questão fundamental: estamos testemunhando uma transformação cultural definitiva ou apenas uma tendência passageira? Especialistas no assunto mergulham na história e no mercado para desvendar esse movimento.

Uma Memória Histórica: A Flor Para Todos

Contrariando a percepção ocidental contemporânea, a rosa nem sempre foi um emblema da feminilidade. Na verdade, por séculos, ela foi uma protagonista em universos declaradamente masculinos. “No Oriente Médio, as fragrâncias masculinas levam toneladas de rosas super impactantes e difusivas, para aguentar o clima desértico”, aponta Dênis Pagani, especialista e autor do blog 1 Nariz. Ele complementa que, na tradição indiana, “homens usam guirlandas e perfumes de flores brancas, que no ocidente são reconhecidas como femininas”.

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Essa paixão não é exclusividade oriental. A perfumista e autora Fábio Navarro recorda que os banhos turcos, frequentados majoritariamente por homens, eram tradicionalmente aromatizados com rosas. A especialista Letícia Maci reforça essa memória histórica: “O império romano também era obcecado por elas. Nas termas, um importante ponto de encontro social exclusivamente masculino à época, a água era aromatizada com rosas”.

A própria Cleópatra, um ícone de poder e sedução, usava a rosa como sua assinatura olfativa. “Alguns historiadores relatam que, quando Cleópatra foi a Roma, ela mandou lavar as velas de sua embarcação com óleo essencial de rosa, para que os romanos percebessem que ela estava chegando mesmo quando não podiam avistá-la”, conta Navarro.

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O grande marco técnico veio no século X, quando o alquimista árabe Avicena desenvolveu a destilação a vapor, criando a primeira água de rosas. “Esse conhecimento migrou da Ásia para a Europa”, explica Letícia Maci. “No Renascimento, a água de rosas se tornou absolutamente popular, especialmente na Itália, onde sua principal entusiasta era Catarina de Médici”, que, ao se mudar para a França, levou consigo seu perfumista pessoal, dando início à tradição perfumista de Paris.

O Divisor de Frascos: Como o Marketing Criou o Gênero

Se a história mostra uma fluidez no uso das fragrâncias, de onde surgiu a rígida separação nas prateleiras? Os especialistas são unânimes: foi uma construção social, impulsionada pelo marketing do século XX.

No Ocidente, a rosa foi associada a símbolos femininos, como a deusa Afrodite e a Virgem Maria, ligando-a à pureza e delicadeza. Em contrapartida, as notas florais nos perfumes masculinos foram se tornando mais discretas, como a violeta no clássico Fahrenheit de Dior (1988) ou as lavandas, historicamente mais aceitas para o público masculino.

O ponto de virada, segundo Dênis Pagani, foi a publicidade do pós-guerra. “A publicidade é um divisor de águas porque ela mexe com uma insegurança masculina heteronormativa”, afirma. Ele cita o slogan do perfume Brut, de Fabergé, que era algo como “Para homens que não têm dúvida”, numa tentativa de vender fragrâncias para um mercado que as via como um produto “afeminado”.

Fábio Navarro aponta a lógica de mercado por trás da divisão: “Foi uma super jogada mercadológica para o aumento de vendas. Quem criava um perfume que antes servia para todos, agora passa a produzir para dois consumidores”. Assim, o público foi “educado” a reconhecer o “cheiro de homem” — como o icônico Cool Water de Davidoff — e o “cheiro de mulher”.

A Contracorrente: O Retorno à Fluidez na Perfumaria

A rebelião contra os rótulos ganhou força nos anos 1990 com a explosão da androginia, materializada no lançamento do CK One da Calvin Klein, em 1994. “Naquela época, havia apenas cerca de 10 lançamentos anuais de perfumes compartilhados”, analisa Renata Ashcar, autora do Guia de Perfumes.

O verdadeiro motor da mudança na era contemporânea, no entanto, é a perfumaria de nicho. Desde 2010, marcas como Le Labo, Byredo e Maison Francis Kurkdjian focam na qualidade da matéria-prima e na originalidade da criação, tratando o perfume como uma obra de arte que não precisa de gênero.

Os números de Renata Ashcar comprovam a tendência: “Atualmente, os lançamentos de perfumes compartilhados e de nicho ultrapassam 1500 ao ano, um número superior à soma dos lançamentos masculinos e femininos”.

No Brasil, O Boticário entrou nesse território com a linha Alchemists, que “possui um perfume sem classificação de gênero em que a rosa é o tema central”, destaca Letícia Maci. Marcas como Phebo e L’Envie Parfums também já nasceram com essa filosofia.

O Futuro é Sem Rótulos?

Apesar do forte movimento em direção a uma perfumaria mais fluida, o futuro ainda é incerto. Enquanto alguns especialistas acreditam que falaremos cada vez mais de “estilos olfativos” em vez de gênero, outros argumentam que a perfumaria de massa, por razões de marketing, manterá a classificação por um bom tempo.

Seja como for, uma coisa é certa: a liberdade de escolher um cheiro pelo que ele nos desperta, e não pelo rótulo no frasco, é uma conquista. É um retorno à essência do perfume — uma expressão pessoal, vívida e real, como as velas perfumadas de Cleópatra navegando em direção a um novo horizonte.


Sugestões dos Especialistas: Rosas Para Todos os Estilos

Confira uma seleção de fragrâncias de rosa, sem se prender a prateleiras, recomendadas por Renata Ashcar, Letícia Maci, Fábio Navarro e Dênis Pagani. (Preços e links de referência do artigo original, sujeitos a alteração).

  • Rose Prick, Tom Ford – R$ 3.385
  • Rose 31, Le Labo – R$ 2.349
  • 006 You Had Me At Hello, L’envie Parfums – R$ 250
  • Rose D’Arabie, Armani Privé – US$ 330
  • Burning Rose, Carolina Herrera – R$ 1.180
  • Rose Kabuki, Christian Dior – R$ 3.199
  • Alchemists Rose, O Boticário – R$ 379
  • Velvet Rose & Oud, Jo Malone – R$ 1.835
  • Rose de Nuit, Serge Lutens – US$ 320
  • Rose Anonyme, Atelier Cologne – R$ 899
  • Rose & Cuir, Frederic Malle – US$ 410
  • Roses on Ice, Kilian – US$ 275
  • L’Homme à La Rose, Maison Francis Kurkdjian Paris – US$ 275
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